Na Aviação, a Segurança de Voo deve estar acima de tudo – tempo, custo e conforto. Os acidentes, que tantas vezes resultam na lamentável perda de vidas, nos oferecem lições que ajudam a garantir que esse objetivo maior seja alcançado.
Em agosto passado, o National Transportation Safety Board (NTSB) divulgou o Relatório Final de um acidente envolvendo um BOMBARDIER Challenger 605, ocorrido em 2021. A investigação revelou uma série de decisões equivocadas que culminaram no trágico evento, resultando na perda de seis vidas. O acidente ocorreu durante a aproximação para o aeroporto Truckee-Tahoe, na Califórnia, quando a aeronave, ao circular para pouso, ultrapassou o ângulo de ataque crítico, resultando em um estol assimétrico, rápido rolamento, perda de controle em voo e, finalmente, impacto com o solo.
Quais lições nós, pilotos profissionais, podemos extrair a partir da análise do Relatório desse acidente?
Erro no peso e balanceamento.
De início, uma descoberta da investigação que merece ser destacada é o cálculo inadequado do peso e balanceamento da aeronave. Dez meses antes do acidente, durante a manutenção das baterias do FMS, foi inserido um peso 3.000 lb menor do que o correto. A aeronave provavelmente operou todo esse tempo com o valor errado, que resultava em um cálculo de velocidade (VRef) 6 Kt abaixo do previsto. Embora essa discrepância não tenha contribuído diretamente para o acidente, ela demonstra falta de supervisão. Serve, ainda, como um aviso para todos nós, pois não há alerta para esse tipo de erro, típico de sistemas informatizados, onde reina a máxima de que “o lixo que entra é o lixo que sai”.
Falhas de CRM e doutrina
A gravação da cabine revelou erros críticos dos tripulantes nos minutos finais do voo. Um CRM deficiente contribuiu para a degradação do desempenho da tripulação, resultando em uma disputa pelo controle da aeronave. Nos cinco segundos que antecederam o impacto com o solo, o Pilot Monitoring (PM) pediu três vezes para assumir os comandos, mas o Comandante nunca lhe transferiu o controle da aeronave.
Os investigadores acreditam que, imediatamente antes do impacto, o PM tenha tentado assumir a pilotagem, mesmo sem a permissão do Comandante, em uma tentativa desesperada de evitar o acidente.
Ao iniciar a curva para a final, a aeronave estava alta, veloz e muito perto da pista, impossibilitando um enquadramento adequado. Em vez de arremeter, a tripulação optou por ultrapassar o alinhamento e retornar em direção à pista, acionando os spoilers para reduzir a velocidade e aumentar a razão de descida. A inclinação chegou a 36º, diminuindo a sustentação disponível para manter o voo – condição agravada pelo acionamento dos spoilers.
O alerta de “sink rate” soou, seguido da ativação do stick shaker. Mais um segundo se passou e o stick pusher foi ativado, forçando o nariz para baixo. Essa ação reduziu o ângulo de ataque, o que desativou ambos os dispositivos de proteção contra estol. No entanto, imediatamente, os profundores voltaram a comandar a cabrada, levando a aeronave a um ângulo de ataque excessivo que resultou em novo acionamento do shaker e pusher. Nesse segundo evento, a aeronave entrou em estol assimétrico, desencadeando um rolamento descontrolado para a esquerda e culminando no impacto com o solo.
O estol assimétrico
É fundamental que o piloto esteja familiarizado com as características de voo específicas de sua aeronave, pois os padrões de estol variam entre diferentes modelos. Tomemos como exemplo o design da asa do Challenger série 600: à medida que o ângulo de ataque se aproxima do estol, surge uma “bolha de separação” no extradorso (parte superior da asa). Esse fenômeno não se manifesta nas características de voo dessa aeronave (não há sinal de buffet pré-estol). Se o ângulo de ataque continuar a aumentar, a bolha se expande e, de maneira repentina, “explode”, resultando na separação do fluxo de ar do extradorso, desencadeando o estol. Na prática (em curvas, por exemplo), é comum que o estol se manifeste em uma asa antes da outra.
Essa perda abrupta de sustentação em uma asa (o estol assimétrico) provoca uma grande força de rolamento. O Challenger 600 apresenta ailerons relativamente pequenos. Consequentemente, com uma asa próxima do estol, a eficácia do aileron se torna praticamente nula.
Assim, é impossível interromper o rolamento até que o ângulo de ataque seja reduzido – única condição capaz de deter a perda de sustentação.
Lições para o piloto profissional
A combinação de fatores como manobras a baixa altura, conflito de cabine, descumprimento de regras e pouco conhecimento do desempenho da aeronave claramente cria um ambiente propício para acidentes. O caso em análise, com dois eventos de estol, sendo o segundo deles marcado por um rolamento incontrolável, serve como um alerta vívido para a importância de abordar essas situações de maneira proativa.
Extrair lições desses eventos nos ajuda não apenas a identificar armadilhas, mas, o que é ainda mais vital, nos permite refletir em como evitá-las. Caso sejamos capazes de aprender algo com esses acidentes, estaremos ativamente contribuindo para um ambiente de voo genuinamente seguro. Na realidade, isso não é apenas uma responsabilidade, mas uma obrigação de todos aqueles que se consideram pilotos profissionais.
Informações complementares:
Arquivo de documentos do acidente: https://data.ntsb.gov/Docket?ProjectID=103554
Press Release: https://www.ntsb.gov/news/press-releases/Pages/NR20230817.aspx
Relatório Final: https://data.ntsb.gov/carol-repgen/api/Aviation/ReportMain/GenerateNewestReport/103554/pdf